Sciaena

INC-3 em Nairobi: Navegando pelas Águas do Futuro Tratado Global sobre Plásticos

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por Valentina Munoz Farías, Lixo Marinho e Comunidades

Na semana passada, estive na sede central do PNUMA (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente) em Nairobi, no Quénia, para participar na terceira sessão do comité de negociação intergovernamental (INC-3) para a criação do futuro Tratado Global de Plásticos – um instrumento legalmente vinculativo que visa acabar com a poluição por plásticos, inclusive no meio marinho. 

Partilho algumas reflexões sobre este processo, analisando as expectativas com que cheguei e aquelas com que saí do Quénia. Para introduzir, gostaria de esclarecer a minha posição e prioridades dentro dos INCs.  A Sciaena faz parte do movimento Break Free From Plastic e, como tal, advogamos soluções reais para acabar com a contaminação por plásticos, nomeadamente as medidas “rio acima”, ou seja, aquelas que se encontram no início do ciclo de vida dos plásticos, que começa com a extração de petróleo. Estas medidas centram-se na redução da produção e consumo de plásticos, e advogam esquemas de reutilização e reenchimento ( reuse and refill).  Por outro lado, e de forma mais particular, tenho-me focado nas disposições relativas a microplásticos e artes de pesca e como estas poderiam ser eficazes dentro de um tratado global. Finalmente, num âmbito mais pessoal, interessam-me as disposições sobre uma transição justa na implementação do tratado e a consideração de grupos mais vulneráveis, nomeadamente, mulheres e comunidades de base. É por isso que, durante o INC-2 em Paris, fui convidada a fazer parte do Women Major Group da UNEA, que está em parceria com a Fundação Mulheres de Mar. Importa esclarecer que nós, como membros da sociedade civil, só podemos participar neste processo como observadores. Esta é uma reunião dos Estados Membros, e cabe aos seus delegados a tomada de decisões finais.

Passando à parte mais substancial do assunto, ao iniciar a semana, não nos surpreendeu a aparição de uma coligação de países produtores de plástico com “ideias afins”, liderados pelo Irão e pela Arábia Saudita, juntamente com a Federação Russa, Bahrain, China, Cuba, entre – segundo eles – “muitos outros”, com a clara intenção de obstruir o trabalho dos INCs e diluir a ambição do tratado. Apesar disso, não houve tentativas deliberadas de estagnação por parte de nenhum destes Estados Membros, como aconteceu em Paris, mas sim um trabalho construtivo desde os primeiros dias. 

Estabeleceram-se três grupos de trabalho destinados a rever e analisar as diferentes partes do rascunho 0 do tratado. Integrei o grupo 1, onde se discutiram as partes I e II do rascunho, focados nos objetivos, definições, princípios e alcances, e disposições técnicas/específicas do tratado. Ao contrário do INC-2 em Paris, sentiu-se um espírito de colaboração que promoveu o avanço nas negociações durante, pelo menos, os primeiros cinco dias de trabalho. Vários Estados Membros optaram por opções mais ambiciosas para lidar com a contaminação por plásticos, o que reforça a esperança em ter um tratado ambiciosamente eficaz. Outro ponto positivo neste INC-3 foi a relevância dos observadores (nós!), cujas intervenções foram ouvidas e valorizadas por parte de alguns dos Estados Membros. 

Destaco a potência da voz do grupo de países africanos, dos Pequenos Estados Insulares em Desenvolvimento do Pacífico (SIDS) e de alguns países do Grupo da América Latina e do Caribe, que mantiveram a determinação nas negociações, apesar das limitações impostas por outros países menos ambiciosos e com grandes conflitos de interesse. Com o passar dos dias, o silêncio destes “países com ideias afins” tornou-se cada vez mais suspeito, considerando o quão vocais tinham sido durante o INC-2 em Paris. Mas eventualmente fizeram-se notar, promovendo medidas maioritariamente “rio abaixo”, como o tratamento de resíduos e a reciclagem, que já sabemos que não funcionam para acabar com a contaminação por plásticos. 

Já no culminar da semana, estes países começaram a mostrar as suas verdadeiras cores. Explico: os Estados Membros podem enviar sugestões ao secretariado da comissão sobre disposições específicas do rascunho. A estratégia destes países com ideias afins foi enviar uma quantidade enorme de sugestões, tanto assim que o texto atualizado está extremamente inflado, provocando uma “morte por documentos”. Algo assim como impossível – ou muito difícil – de analisar de forma produtiva e construtiva. Na noite de domingo, e devido aos claros conflitos de interesse destes países, o grupo de trabalho nº3 informou que não conseguira chegar a um acordo de mandato para o trabalho entre sessões, o que nos deixa em terreno rochoso para avançar de forma efetiva até o INC-4 em Ottawa. Este trabalho terá, então, de ser realizado de forma informal e com o dobro dos esforços. O lado positivo disso é que esse mandato poderia ter sido liderado por um conjunto de países que poderiam ter colocado em grande risco estes esforços.

Algumas reflexões mais pessoais:

  • Continuo a ouvir que precisamos de -mais- crescimento económico. Mas não entendo porquê, se temos tudo. Estou cada vez mais convencida de que o que realmente precisamos é de estabilidade económica baseada em justiça social.
  • O Quénia tem um feriado nacional para plantar árvores. Será que precisamos de mais disso? Crescimento conectado com a base?
  • Apesar das frustrações coletivas e do cansaço, o espírito de luta constante dos nossos aliados é incrivelmente poderoso e motivador. Agradeço, profundamente, poder rodear-me deste grupo incansável de pessoas interessadas no bem comum, a quem expresso uma grande admiração por este incrível trabalho totalmente altruísta.
  • O crescimento pessoal e profissional destas instâncias é o melhor reforço positivo e confirma-me mais uma vez que tomei muito boas decisões na minha vida.
  • Estes processos são super complexos e muitas vezes tornam-se difíceis de entender e seguir. É demasiada informação e muita dela perde-se entre a tradução e o cansaço mental. É forte e doloroso ver como dependemos de delegados que muitas vezes tomam decisões sem ter acesso toda a informação disponível, e que outros atuam sob a influência do lobby da indústria. Sem mencionar que o conflito de interesses nestes processos é real, está super presente e é muito preocupante. Só podemos continuar a pressionar os nossos delegados, exigindo transparência e divulgando informação fidedigna com base no conhecimento técnico e científico.
 
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